quarta-feira, 25 de maio de 2011

Um dia em que nada parecia diferente, um dia das horas da manhã para ir ao diferente enquanto tenta esquecer o passado que não passou. O passado que marca a pele todos os dias, devagarinho pra causar mais dor. Todos os dias, o café sem açúcar para ter ânimo e aguentar as dores da alma, porque o corpo se apresenta saudável por fora. Nesse dia, no dia em que tudo parecia normal, a ligação palpável.
Estava de volta à casa, depois do dia cansativo, dia que ainda tentava se adaptar a ela, porque ela mesma não se adaptava a nada. Estava descalça, preparando-se para terminar uma tela ou um poema ou qualquer coisa dessas que ela gostava de fazer, enquanto esquentava o café e colocava na vitrola – um dos únicos objetos da casa nova e solitária – um disco gasto da Billie Holiday ou da Janis Joplin. Enquanto andava com aquele jeito de dançarina que possuía, sentiu o cheiro de cigarro que vinha do apartamento ao lado e, como todos os dias, amaldiçoou o vizinho. Acendendo cigarros na hora mais triste dos dias dos anos da vida, a hora em que repara que está sozinha onde tudo é novo e nada se adaptara a ela. O cheiro de cigarro lembrava os amores amanhecidos e contrariados.
E enquanto evocava uma lembrancinha qualquer, pronta para chorar no mesmo horário, ouviu toques do telefone celular – seu toque ainda era a canção que precisava ser esquecida. Correu para a bolsa, pensando que seria sua mãe ou suas amigas, pronta para desabafar como sempre, para chorar pelo telefone e pedir abraços e socorro. Mas a voz que veio depois do seu alô não era de sua mãe ou de nenhuma das amigas. A voz que veio ao dizer alô era a voz de quem lhe disse amor por muitas vezes. De súbito, sentiu ânsia, ao ouvir aquela voz que estava exatamente como lembrava. A mesma entoação, a mesma voz baixa que perguntava seu nome como tantas vezes tinha feito. É você? Dizia a voz e a cabeça girava girava e o coração e a disritmia frenética, a tontura, a mão no telefone enquanto a outra segurava o peito naquele gesto característico seu que denotava o medo de perder a respiração e o sentido de tudo, o jeito de tentar manter o coração dentro do corpo.

-Sou eu.
-Pelo jeito, não perdi seu telefone. Espero não ter te perdido.
-Você nunca me perdeu. Eu também tenho as minhas promessas, embora você não saiba delas.
-Mas eu sinto. E isso basta.
Se pudesse ver, ele estaria sorrindo. Ela estaria chorando. Sempre foram assim, antagônicos.
-Não sou de quebrar promessas, menina. Quero falar com você mesmo que seja em silêncio. Você mesma disse uma vez: as barreiras se foram, não voltarão mais. Quero tanto te ver...
-Preciso te contar das marcas que ganhei, das noites que passei no escuro a te buscar.
- Eu creio que, agora, posso pintar os seus olhos.
-E quem sabe, um dia, eu consiga pintar os seus. Mas você sempre foi o meu maior mistério, minha ruína. Teus retratos ficam sempre incompletos. Modigliani, modigliani.
-Quero tocar nas tuas mãos... Você nunca percebeu mas as mensagens de amor na tinta eram sempre tão claras... as mensagens de amor das tuas mãos, era isso que eu tentava manter pra mim e sentir enquanto apertava teu braço, te pedindo sem coragem: fica. Foi assim quando tuas frases eram então de puro desespero. Eu sempre via. Eu sempre sabia. Tuas mãos puras, precisando das minhas, pedindo por elas enquanto você recusava outros toques. Eu sabia que eram meus dedos que você esperava entre os seus. Eu tentava.
Quero tocar tuas mãos agora para não largar mais. Para que você possa escrever o nosso amor realizado e cada vez mais nosso. Para que eu possa tirar toda a súplica das palavras na tinta. Te modificar, pra ser minha.
-Você limpará minhas mãos de toda a dor que elas contém? Você me tem. Você me teve no momento em que teve a coragem de me olhar nos olhos e pedir licença. Me olhar nos olhos e pedir: quero conhecer sua alma, quero conhecer o que você é – quando outros nunca tentaram.
-Você já sabe onde me encontrar. Onde começa é onde termina. Mas vem, vem.

E o silêncio.

Quando desligou o telefone, chorava. Chorava porque o cheiro de cigarro ainda continuava no ar, porque, maldito, o vizinho a lembrou no momento certo. Porque as promessas não se perderam nem as palavras ditas foram em vão. As palavras não iam mais morrer. Seus textos, seus desenhos. Os nós. O ritmo da respiração. Era tudo sobre ela. Era tudo sobre ele. Dele.

Billie Holiday cantava im gonna love you like nobodys loved you. Era totalmente verdadeiro, verdadeiro e necessário. Ela cantava junto. Colocou o sapato e olhou para as mãos. As anotações que seriam trocadas. As anotações que seriam feitas por ele, para marcar o sempre. Ao trancar a casa, teve a certeza de que já não era a mesma e duvidara de quem fora antes. Ele pintaria os olhos, ele pintaria os olhos e as mãos dela. A falta. Porque o tempo, hoje, o tempo foi vencido.
Não saberia nem seu nome. Ele me falaria sobre o mundo, sobre projetos e a arquitetura de prédios, discutiríamos Caravaggio e Hermingway, ele me tomaria pelos braços quando nossas opiniões fossem discrepantes e seguraria minha mão quando estivesse na escuridão. Me acordaria com Os três mal amados - o amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. E saberia que esse amor era eu.
Coração seco
Aridez da alma
Secura de ideias
Sertão lírico.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Na Solidão, meu coração é único. Amarras e nós. Amarras em nós. Amor é jogar-se de um prédio esperando o baque com o solo, amor é farpa no dedo. O coração não é uma pipa - mas voa como se fosse. E se perde, também.
Fazia barulho enquanto andava, marcava cada passo com seus pés numa eterna dança, pisando firme. Só queria ser capaz de um mistério, pois trazia a vida e cada amor estampados no rosto. Pois trazia, principalmente, o amor estampado no rosto. Seus pés com sinos, seus pés com pequenas moedas, amuletos. Só para tentar ser um mistério que, talvez, até ele quisesse desvendar. Como se mostrasse por fora o valor que tinha e carregava dentro. Como se quisesse mostrar para quem fosse capaz de ver: ela era capaz de marcar o mundo.
Desafio o universo, incendeio o mundo de olhos fechados. As pessoas não percebem mas o coração bate. As pessoas não percebem mas há um movimento interno eterno das coisas que me cansa. Eu sou a Joana Real. E a culpa foi dele por ter se inclinado demais. Promessa de juventude, atriz, poeta. Possuindo o que eu era de peito aberto - quase como correr com vento.
Ligação física que toma o lugar da invisível. A alma é prisão para os que amam. A alma é o limite e não basta - nunca me bastou. Ligações palpáveis, sob o olhar da vigia. Presa no próprio corpo. Limites intransponíveis. Irreversível é o amor e o amor é a queda. Efêmero é o fim, esperando novos começos.