quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

De nada adianta escrever poesias. De nada adianta sentar-se à maquina.
Não posso me perder. Não posso deixar de escrever. Um exercício de sanidade
Estou sã ainda.
As terminologias
As homeopatias
As profilaxias
nada adianta.
Deixo registrada minha falta.
Eis que tenho falta de vontade.
Insatisfação aguda
O levantar da cama me demanda um grande esforço
O piscar os olhos
O abrir de boca
a fala.
A língua hesita
A boca seca
Eis algo na garganta que não sai
É o fracasso.
Toda menina esconde os machucados que faz enquanto está sozinha
Os remédios que toma escondido da mãe
as insônias
o choro desmedido
o corte que fez sem querer
Por trás de band-aids e meios sorrisos.
Uma cicatriz é só marca na pele pra quem vê de fora
Não há histórico de fracasso e melancolia
nem noites mal dormidas
nem queimaduras de cigarro
ou cortes com uma lâmina qualquer que não tem outro fim se não a morte.
Vita detestabilis.
Só o que sobra de quem se atira pela janela é o balançar das cortinas.
Minhas células gritam um nome
como sirene a chamar os navios
Só me esqueço de que eles todos jazem queimados
em algum porto.
Não sou bicho de fácil convívio.
Aqueles a quem amei, me foram tomados.
Por circunstâncias ou por pernas melhores.
Minha vida toda fui ensinada a ser sozinha.
Brincar comigo mesma, sem primos da mesma idade.
Pedir conselhos aos livros
e aos poetas,
Essa gente mentirosa, antropofágica
que me ensinaram sonetos e versos alexandrinos mas não as mazelas da vida.
Cresci, me achando filha de carbono e amoníaco
pensando que tudo que amei, amei só.
Depois da poesia, nada veio.
Não é com palavras que se salva alguém de se jogar de um edifício.
Não é com um terceto que se impede alguém de se atirar ao fogo.
O que cada um quer é ser consumido
lenta,
gradualmente.
O que cada um quer é ser pessoa
e não poeta.
Eu só aprendi a ser um.
E terminar rimando.
Ainda existem remédios pela casa pra fazer qualquer pessoa dormir por meses.
Dessa vez eu acredito que não vá ter erro.
Sem remédios de estômago
Sem remédio de dor de cabeça
Nada dessas coisas triviais que não surtem efeitos.
Estou acostumada.
Escolher os remédios mais fortes
com substâncias que brigam entre si
uma guerra nuclear dentro de mim
uma explosão atômica
A verdadeira guerra do Iraque
no meu corpo.
Em um momento
você está bem
eufórico
radiante
Presságio da queda
que vem.
Eu vivo.
Tristeza é escolha
eu escolhi continuar triste.
Acordar cedo
fingir ter vida saudável
encher o rosto de maquiagem
aparentar ter cor
pentear o cabelo
tudo isso
mostrar uma força invisível
ascendente
mesmo em ruínas.
A boca seca (de beijos)
o corpo pesado (de cansaço)
os olhos moles (do choro)
A perna fraca (de amores)
O braço pedindo (um abraço)
O estômago dói (das mais diversas dores).
Ontem uma estranha carga de energia me percorreu
Uma fraqueza que vinha das pontas dos dedos.
De saltos, cedi ao meu peso
Não só o do corpo
Mas das ideias também.
Cedi ao que eu tinha
me agarrei na solidão
com unhas e dentes
porque era a única coisa
real.
Tirei os sapatos,
tomei um remédio,
deitei.
Ainda assim,
a sensação
de não estar em mim,
continuou pela madrugada.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

O Amor estava do meu lado criando azul. O amor estava na mesa com conversas sérias e sobretudo preto. O amor fez desejo com meus cílios e se identificava pelo cadeado no pulso. O amor me desencontrava, às vezes, na hora do almoço. E era seguido com olhos ávidos enquanto caminhava. Aprendeu a falar muito, sem nada dizer. O amor foi secreto quando devia e gritou a plenos pulmões quando, então, pôde. O amor me deu o número 10 e se espalhava pelas paredes todos os dias, sem levantar suspeitas. Me apresentou um fabuloso destino, surgiu Florentino Ariza nos tempos do Cólera. O amor me deu apelidos secretos, me mostrou o sol das 17h no alto do primeiro parque. O amor me fez companhia no pôr do sol e no nascer dele. Dividiu camas e memórias. Marcou com sangue o algodão e me fez pactos. O amor recebeu um cadeado sem chave quando nem se sabia amor de vida. E jurou eternidades quando ninguém mais jurava. É Marat, morto na banheira, é Keaton, é Sid, é Nino. O amor me contou dos rios e seus afluentes. É vizinho de sonhos e mortalha. Construiu uma camisa-de-força para dois e escreveu no meu corpo. Ficou marcado como tatuagem. O amor é orquídea que cresce mansinha na sombra mas cresceu e cresce tanto que abri as janelas e as portas. O amor é imenso. Foi como o de Drummond, de Bowie, Chico Buarque, Leonilson. Mas, mais do que tudo, o amor foi meu – com as mãos sujas de tinta e o olhar doce.

domingo, 2 de setembro de 2012

O eletrocardiograma imitou por pouco tempo a pulsação que Tábata trazia no pulso em tatuagem, pra lhe lembrar que ainda havia vida naquele corpo frágil. O branco, o branco que ela tanto temia vinha pra lhe queimar: lembra-te de que é mortal.

Memento mori.

Tentou perguntar o motivo, achou que a voz saira fina e fraca. Ele ouvira, no entanto.
A resposta foi faca no coração. Marco Antônio parecia quebradiço naquela cama de ferro. O rosto magro, o lençol manchado de sangue e suor, as queimaduras de cigarro datadas da noite anterior, marcas de agulha, hematomas. Na mesinha, colocadas com cuidado, estavam fitas pretas de cetim, um vidrinho de perfume, páginas soltas de seu bloco com gazelas e leões. A única coisa que Marco Antônio não permitiu que retirassem, usando de seu último ímpeto de força para apertar o braço do paramédico e lhe impedir, era seu colar. O cadeado e a navalha brilhavam na carne de seu pescoço, aquele ínfimo pedaço de carne descoberta entre as roupas de enfermo que lhe colocaram.

“Era pra ver se você vinha. Meu tempo acabou. Esse tempo...”

O cheiro que invadiu o ambiente, naquele instante, era o das orquídeas, o cheiro de canela, o perfume dele e o dela que se misturavam tão bem. O cheiro da morte anunciada. A trajetória do herói é em parábola. Ela sabia em que ponto Marco Antônio se encontrava.
Uma nota só. Uma linha reta – uma vida.
Só nessa hora a vida segue linha reta. A hora só se acerta quando morte e vida se cruzam. E aquele homem, o seu homem, estava morto.

Tábata não derramou uma lágrima. Pegou os pertences da mesa e os enfiou na jaqueta de couro. Deu um beijo nos lábios de Marco, marcando o batom vermelho e fechou as janelas, evitando a corrente de ar.

Era noite de quinta-feira, 30 de setembro de 2012.


Os jornais anunciavam, três dias depois, a morte de Tábata.
A pequena gazela e seu corpo boiando no lago do Ibirapuera. O porteiro a vira pela última vez às 19h. Transtornada, segundo ele, Tábata descera do terceiro andar do prédio onde morava vestindo sua jaqueta habitual. Os cabelos estavam soltos, sua boca bem pintada de vermelho. Sem bolsa. A perícia acredita que Arpe tenha se dirigido ao parque, burlado a segurança do local e, exatamente às 00:00 – de acordo com os investigadores um tipo de horário-ritual em sua relação com Marco Antônio Lionello – ela subira nas grades, descalça, e se jogara com pedras nos bolsos.
Em seu apartamento, encontraram sete bitucas de cigarro, uma seringa usada, sangue seco no carpete e uma caixa de madeira com uma cruz talhada. Ao lado, cadernos, livros marcados e folhas avulsas onde se lia:
Me enterrem de pé, como no livro, porque vivi ajoelhada a vida toda. Quero minha caixa ao lado da caixa de Marco e meu corpo ao lado do dele, como deve ser. De mãos dadas, incendiamos a vida. De mãos dadas, incendiaremos a morte. Tal qual aqueles dois, tínhamos um pacto de morte. Eu tenho que manter minha parte no trato. Está escrito.

Em outra, uma nota de suicídio dirigida a M.A.L:
O amor é peste. Estamos os dois condenados a ficar do lado de fora dos burgos. Nada importa. Seremos heróis por um dia. Sem glória alguma. Você lambeu minhas chagas, absorveu meu veneno, compartilhou minha loucura. Tudo o que me resta é pó. Jogo minha vida no sol das 17h, para ser consumida em altas labaredas. Só vejo branco, por todos os lados, branco é ausência de tudo. Não me deixe comigo mesma, Marco. Não suporto mais. Ninguém nunca será tão feliz como nós dois fomos. Você estava certo. Só é possível vencer o tempo se sairmos dele.
Da sua, da sempre sua, amante, mulher e presa,

T.

-
Tábata Arpe, 20 anos, cometeu suicídio no dia 03 de outubro de 2012.
Não me deixe a loucura, Marco Antônio. Não me permita criar o vazio. Não me deixe entrar no desespero de não ser nada. Eu sou o que você cria e alega. Eu existo onde você me toca. Sozinha, caio no abismo de mim mesma e o buraco que criei por tantos anos me engole. Tenho medo das quatro paredes, do branco, do pó. Não me deixe acabar como Claudel. Eu não sei de mim, me desconheço. Sou o que você me dá. Sei do que você me deu nome. Marco Antônio, ninguém nunca ousou abrir a porta. Ninguém nunca ousou escancarar minha boca, lamber minhas chagas, beijar meus pecados, sem pedras nas mãos. Eu existo porque você existe. E não sei o que faço na maioria das vezes, quando me vejo sozinha.
Gosto do som do riso, da fala embebida de sono. Mexo em seus cabelos, o enlaço com as pernas. Meus pés sempre foram tão frios e, entretanto, ele não liga. Com mãos de tecelã cuidadosa, crio caminhos no corpo dele. O sono compartilhado. Meu vizinho de sonhos agora ocupa lugar no meu espaço. Lado a lado, nariz com nariz, pele com pele. A madrugada sussurra pela janela aberta do quarto de menina. E eu o olho mansinho, enquanto adormece.
O quarto alugado para os dois tinha um piso que rangia. Desde que entrara pela primeira vez Tábata sabia que era porque a casa era como eles, pronta para transbordar.
As paredes decoradas com imagens que pululavam da mente de ambos. O chão inundado em suor e sangue.
Naquele canto esquecido por deus, eram um. Naquele canto, eles eram.
Fecho os olhos e vejo nossos galpões antigos da Barra Funda. Embora sem moradores, sinto que podemos povoá-los. E povoamos. A linha do trem está próxima. As janelas abrem para fora e eu gosto, não são de correr. Nada corre. Tudo tem nossa marca e nosso tempo. Nossa ordem. E todo o caminho se preenche com a nossa presença. A porta verde. A tarde tranquila que se prepara para a nossa hora. Nada mais importa. No segundo em que, pé ante pé, faço barulho nos tacos de madeira, eu existo. O tempo é relativo, diz a física. E só fui entender isso quando, convidada, abri a porta e me fiz presença.
Marco Antônio, você me permitiu ter vida. Sei que depois de morta serei coroada rainha ao seu lado. Incendiamos o mundo. Somos os demônios das 17h. Acho que só assim faço as pazes com o tempo e o venço pra sair dele. Cravo a faca em suas costas e vejo o branco das salas dos loucos. Entretanto, estou sã. Sempre temi terminar como Claudel. Quero ficar consciente ou me afundar na loucura de vez.
A sanidade talvez seja a maior das loucuras.
Cito V. Woolf para lhe dizer que ninguém será tão feliz como nós dois fomos. Nosso eco ficará em todos os cômodos, sem nunca ser compreendido. A fruta que caiu deveria ficar sozinha mas houve quem a recolhesse. Por sua mão eu fui salva. Mas não pude te salvar do mesmo modo.

Te encontro
Me encontra
T.
Marco Antônio,

agora faz um vento bom pra mexer com meus cabelos. Talvez dê pra flutuar de pés descalços. O cheiro de canela me lembrou você. Mas meus sentidos me enganam. Todos eles agem como se presentificassem sua ausência.
Procurei remédios pela casa sem a coragem para tomá-los
mas para ter certeza de que eles estariam ao alcance das mãos.
Pelo menos um de nós precisa ser saudável
ou aparentar sê-lo.
Eu prometi que não e falhei.
Tenho sempre um caco de vidro nos dedos, por quebrar espelhos. Tenho sempre o gosto do sangue na boca, o fracasso que envolve as papilas degustivas.
Cigarro tem gosto de esquecimento
Lágrima tem cara de falha
E as duas marcas no canto interno do braço tem a aparência de uma vida.
Se você retira a casca do machucado, ele não vai sarar nunca. E não é a cura que eu quero.
O resto da minha alegria ficou nesse cigarro. Sem resquício do sorriso que deixa covinhas.
O resto da minha alegria se perdeu no café amargo. Na boca de lobo, do lobo, e lá ficou.
Vontade de criar coisas bonitas
destruir coisas bonitas
o meu rosto não é tão diferente
mas posso mesmo assim destrui-lo?

É tão fácil morrer que o pior mesmo é continuar vivendo.
Não fossem os versos todos que pessoa bonita eu seria.
O resto da minha alegria ficou na sarjeta, em uma dessas alamedas, travessas da Av. Paulista.
Desceu até a boca de lobo, engraçado esse nome, me remete a ele, e lá ficou.

Sensação de ter um cano de arma na boca.
Teria coragem de apertar o gatilho?
Você me mata e me dá vida. Você me mata.
São suas escolhas, Marco Antônio.
Linha tênue
Branco.
Quando morreu não deixou nada. Só a marca do seu sangue seco no asfalto e a estupidez que a marcou por toda a vida. Nem seu sangue tinha algum valor. Não valia a pena empenhar. Saiu de propósito sem agasalho pra tomar friagem. Saiu de propósito sem documento pra que ninguém soubesse quem era. Enterrada como indigente em vala comum. Não havia glória nenhuma. Saiu desviando dos olhos de quem passava. E não era capaz de ver seu reflexo nos vidros das vitrines. A moça de preto passava tão rápido que virava vulto. Não queria se ver. Nada de si parecia ser limpo. A sua parte mais bonita acabara perdida por um erro que cometera. A sua parte mais bonita, ele, não estava mais nela mas ainda a sentia viva e latejando como se estivesse. O membro amputado não para de existir na cabeça de quem o perdeu. O erro era dela. O erro era ela. O tempo eram os cartões que ele mandava. As notas de onde comiam, com o que gastavam, seus tíquetes de cinema e teatro, suas palavras. O tempo era aquilo que tinham quando estavam juntos, e só. Na distância, ela não existia. Estava perdida no branco. Era só quando ele a encostava, quando ela o puxava pelo casaco, quando reparava na sincronia dos passos pelas calçadas que ela se via alguém. No encontro com o outro, ela era. Não soube explicar. Faltou palavra. Não quis deixar a mão no instante. Pendeu. Flor que tomba do galho. Sobraram os registros no quarto de parede marrom, aquele que só ele tinha a chave.
Quem visse o sangue já seco no chão não poderia supor de quem era ou como acontecera. Ali jaz. Próximos amantes fazem uso das mesmas palavras. Do mesmo gesto. Aqueles dois jazem juntos. Tábata só teve coragem de uma coisa na vida. Sua coragem era ele. O corpo encontrado na avenida. A mochila continha seus cadernos escritos com letra ilegível, seus desenhos e projetos e retratos que se repetiam ao longo de inúmeras páginas. Seu celular tocava. Era ele. Ela não podia mais atender.

domingo, 26 de agosto de 2012

No chão, o tecido que o cobria. A faca suja de sangue pendeu da mão de Tábata e caiu com um som seco no piso de madeira do banheiro. Era branco. Os papéis que ele escrevia estavam com marcas de dedos, a boca se entreabriu como num quase-grito que não teve força de sair. A outra mão de Marco Antônio segurou com força a borda da banheira. Era branco. Um último olhar dirigido a ela deu-lhe arrepio. Um eco de frase ficou solto no ar úmido de vapor do banho. O cheiro ocre que havia nas paredes, um movimento que ficou pela metade. Era Branco. Era branco. E se tornou vermelho. Por ela.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

A mão direita, a mão direita. Ela sabia que a devia cortar e jogar fora. O fez. A passagem da bíblia veio como epifania. Não queria o corpo todo no inferno. Sobraram-lhe as marcas na outra mão como chagas de um Cristo. Carregava sua coroa de espinhos com glória. Era rainha e, ele, seu rei.
Os olhos que são bons têm luz. Ela encontrou a luz do seu próprio. Era luz de chama mas brilhava e a fazia um ser humano bonito.

Três fogueiras servem como sinal universal de pedido. Sabia que era o primeiro e o último que receberia. De maneira alguma quis que as três fogueiras continuassem acesas. Correu ao encontro, explodiu com nitroglicerina as velhas celas. E riu. As chamas continuaram queimando. Não mais pedido de socorro, mas plano completo. O fogo comeu o passado e destruiu as cruzes, as masmorras, os arquivos. Nem o pó ou a ruína sobraram da Bastilha para entrar pra história.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Andava na rua como se estivesse decidida a morrer. Mesmo Tábata que não era nunca de chorar na frente de alguém teve que cobrir o rosto no braço pra esconder as lágrimas. Seus olhos estavam encostados contra o couro e com eles fechados podia jurar que o casaco era o dele. Desceu do ônibus aos tropeços, no ponto errado. Não que não soubesse onde estava, só queria andar mais. Perdeu a conta de quantos carros buzinaram por ela ter atravessado sem olhar para nenhum lado. Sua filosofia de vida era a de que se quisessem parariam para que ela passasse. Nesse dia em questão não sabia se queria que parassem. Sua mente dizia que não. Talvez fosse um bom modo de desaparecer por completo. O pensamento que vinha era o de que as rodas fossem, quem sabe, continuações das pernas. Ou a invenção dos homens para parar de usá-las. Sem utilidade, atrofiariam uma hora ou outra. Tudo o que não se usa, atrofia-se. O que acontece, então, com o que se usa demais? Desenvolve-se? Tábata não sabia. Desenvolver era evoluir e ela não achava que podia. Ocorreu-lhe que talvez quisesse seu coração atrofiado. Era impossível. Tinha a certeza de que esse era seu músculo com mais uso – seguindo fielmente a lei de Lamarck. O vento forte que fazia batia no rosto de choro e secava as lágrimas. Esse vento forte tinha nome: Marco Antônio. Aquele homem era o vento, o som do freio dos carros que passavam por Tábata – a louca – na grande avenida. A salvação e sua ruina. Era tudo. Era um ponto na página em branco. Lembrou do seu poema de infância. Os relâmpagos vermelhos que o céu inteiro incendiavam. Era outra a origem da tristeza. Nada vinha de fonte limpa, como a deles. E era outro o canto que acordava o coração para a alegria. Não lembrava a ordem. Mas sabia que era tudo ele. Ele em cada letra. Ele o canto. Ele a voz. Ele o coração. Como uma roda. Ela era a perna. Então vem o baque. O encontro. Metal indo contra orgânico. Barulho de relâmpago atravessando o céu. A boca de Tábata se abre com dificuldade para gritar por Marco Antônio. Como um demônio, ante seus olhos. Pela última vez.

domingo, 5 de agosto de 2012

Era dessas mulheres que queriam tudo da vida. Em uma das habituais noites em que andava por aí com sua inseparável jaqueta de couro e suas infinitas correntes e alfinetes – que nada mais eram do que seu modo particular de dizer que qualquer aproximação desnecessária seria seguida de morte lenta e dolorosa – o encontrou. O relógio do pulso de um estranho marcava 3h da manhã e ela o viu na entrada de um clube noturno com um beijo em neon vermelho. Os faróis dos carros refletiam no rosto daquele rapaz, deixando-o tentador.

Ao se aproximar lentamente, analisou os gestos, planejando seus atos. Ofereceu a ele tudo o que tinha em troca de apenas uma noite. Mesmo que tudo o que tinha não fosse seu. Tábata, era esse seu nome, era vista pelos outros como uma encrenqueira que vivia à margem de tudo. Não tinha emprego fixo, nem nada que fosse possível usar essa palavra. O dinheiro com que pagaria o rapaz pela noite, conseguiu roubando dos casacos deixados por senhores e senhoras da alta sociedade para que ela guardasse ao entrar em restaurantes chiques. Eram tão ricos e estúpidos, ela dizia, que não reparariam no sumiço de 500 dólares, de um cartão de crédito ou mesmo da foto 3x4 de algum familiar da carteira. Nada importava. Era só conseguir outros.

Ele aceitara a oferta. Tábata não fazia perguntas, mal falava. Não estava interessada em saber nada sobre ninguém mas se viu tentada a perguntar o nome daquele estranho de sorriso bobo. “Marco Antônio” - obteve como resposta e não pôde sentir se ele a estava enganando ou não. Respondeu, sincera, como se chamava e foi surpreendida com um riso frouxo do outro que lhe disse:

-Tábata, a Gazela, nome muito incomum para uma mulher que aparenta ser devoradora como você, não acha? É um cordeiro em pele de lobo.

Viveram juntos por anos e anos. O único objeto que possuía era uma caixa de madeira, indiana, comprada com seu próprio dinheiro, contrariando tudo o que pensava sobre isso. Guardara um pedaço da camiseta dele que rasgou na primeira noite e em todas as outras. Seus bilhetes, os fósforos que acendiam os cigarros de ambos, um vidro com sangue, alguns dentes.

Quando soube da morte de Marco, Tábata entrou em uma daquelas crises que a acompanhavam. Entretanto, sabia que não conseguiria quem a tirasse daquele estado.

No mesmo dia, horas depois, seu corpo foi encontrado no lago do Parque Ibirapuera. Vestida com sua jaqueta de couro surrada, trazia no dedo médio da mão esquerda uma fita de cetim preta, nos braços, a caixa de madeira e nos bolsos do casaco, pedras de tamanhos diversos recolhidas de todos os lugares que os dois já estiveram e prometeram incendiar juntos.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Em sua última crise de auto-destruição, Tábata se queimou três vezes no pulso com um cigarro seu, furou as orelhas sem nenhuma forma de anestesia - esquentando as agulhas velhas da mãe na boca do fogão (e achava engraçado dizer boca do fogão, como se causasse nela uma tentação em beijá-la e ver se era como as outras bocas que conhecia), fincou as unhas nas coxas causando feridas e, julgando que ia perder a sensibilidade na região, cortou todas as pontas dos dedos com seu canivete - herança de família.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Na rodoviária fiquei parada. No trânsito interminável de roupas e histórias, eu não tinha ninguém para contar a minha. Também não possuía rota definida ou fio de lã que me mostrasse, tal qual Teseu, a saída. Tampouco conhecia a entrada, o que me fez ficar perdida no meio das duas pontas. Parece que é assim por muito tempo: perdida entre as duas pontas. O meio, o mediano. Dizem que a felicidade está na certa medida. Mas nunca acho a razão de nada nem chego a fim nenhum. Não lembro como segui até a rodoviária mas, ali, na justa medida de tudo, parei pra contar o tempo sem olhar relógio.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Você me dá vontade de escrever nas paredes
De ser anti-herói
todo dia.

Música alta pra anestesiar a falta
Pra que eu não preste atenção que sobra espaço na cama
E eu não posso dividir o travesseiro.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

O saxofonista parado no meio da calçada entre os passos mecânicos de toda a gente. Tocava Moonlight Serenade, ela reconhecia pelos velhos discos de Glenn Miller que o avô adorava. De repente, mesmo com pressa feito aqueles que passavam pelo músico sem o ver – ou ouvir, como se o som fosse abafado por outros típicos de metrópoles, ela parou. Seu par, que apertava a mão dela com força, parou em seguida. Em um daqueles gestos que se fazem sem pensar, pegou na mão dele como numa valsa. Ensaiaram uns tímidos passos, abraçados. Um pra lá, um pra cá. O músico já então tocava as primeiras notas de um Tom Jobim, certamente influenciado pelos dois amantes que dançavam sem jeito nos tempos em que ninguém ousava dançar. Sob o som do instrumento ela sussurrava no ouvido dele: Fundamental é mesmo o amor, é impossível ser feliz sozinho. De frente para o saxofonista, aqueles dois pararam de seguir o andar dos outros habitantes e criaram seu ritmo próprio, como tudo que vinha deles, inspirados pelas notas soltas do músico anônimo.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Enquanto tomava banho, olhou seus pés. As veias estavam saltadas, pareciam um tanto quanto roxos e sentia uma fraqueza intensa. Sozinha, sabia que se desmaiasse agora, provavelmente só a encontrariam horas mais tarde. O relógio marcava pontualmente nove horas. A casa era só dela até então. Continuou a olhar os pés, se achando fantasma. O que a assegurava de que existia? Qual era a certeza que lhe deram ao dizerem que estava viva? Como é que se verifica? Pensou na fraqueza como forma de vida. A única que conhecia. Talvez, se batesse o pé na quina, machucasse o mindinho, arranhasse as coxas, talvez se se olhasse no espelho e encontrasse nele aquilo que correspondia ao seu rosto, talvez se... mas nada disso servia pra dizer que ela existia. Tinha os documentos que comprovavam – ali podia ler seu nome e testemunhas assinavam. Não evitou o pensamento de que atestavam, na verdade, o seu óbito. Mas pra se morrer é preciso ter vivido pelo menos uma vez e ela não estava certa de que vivia ou viveu. Era melhor dizer, então, que assinavam ali a sua não-existência. Testemunhas de uma falsa humanidade que possuia até então ancestrais e endereço. Viver era contrato assinado e não se lembrava de papel algum com sua letra que confirmava isso. Debaixo da água quente, seus pés ainda estavam roxos. Pode ser um problema na visão, pensou. Mas realmente achava que pessoas não possuiam problemas na vista. Era apenas uma forma de ver diferente. Como as pessoas sabiam o que era o normal? Os olhos são, todos, diferentes uns dos outros e até há convergências entre os dois olhos de uma mesma pessoa... Por que então tratar como doença o que já nos é fadado a ser incongruente? Não tinha resposta. Não sabia como chegavam à conclusão de que tal visão era a exemplar e, o que fugia disso, possuia erros. Nunca fora muito de acreditar em ciências ou deuses. Começava sempre a se desvirtuar do assunto com essas coisas que, transformadas em diálogo, não entendiam. A mãe a dera como especial, diferente das outras crianças. E tinha pra si que, fosse um olho, a julgariam como aquele que deve ser curado ou transplantado. Se eu fosse um olho, pensou decidida enquanto a água ainda caía nas costas, eu seria um olho cego.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Esse meu menino fica pequeno em meus braços, tem todo o meu amor marcado por todas as ruas e cada tecido do corpo. Dirão que foi um crime passional, revirarão caixas, encontrarão as pedras que largamos no nosso canto – recolhidas e escolhidas por seu peso e tamanho. Tudo o que restará de prova do crime poderá ser emcontrado nos dois corpos. Ossos da mão esfolados, cortes superficiais nos dedos, roxos intensos por toda a pele, marcas de unhas minhas nas costas dele, minhas unhas quebradas no asfalto. Todo o resto virará pó, pra que criem uma história desses dois amantes encontrados mortos, causando alvoroço, crime sem solução que atravessa os tempos. Entraremos pros arquivos policiais como aqueles dois sem nome e sem face, conhecidos apenas pelas marcas de amor deixadas um no outro.

terça-feira, 26 de junho de 2012

Salomé rendida beija a face de seu homem morto. O último banquete, mais delicioso do que qualquer outro que já tivera. Num surto, leva os dedos à boca, manchados do sangue e embebidos da saliva daquele que lhe entregou a vida, pra sentir seu gosto. A cabeça de João Batista jaz na bandeja de prata. Ela sabe que é ali que deve repousar – ao seu lado.
Não há deus que desça sobre nós. Ou sobre mim. Não há velhos testamentos. Os evangelhos de nada me servem, nem os antigos ensinamentos. Sei que com cada gesto preparo esse ninho pra nós dois – feito de sangue seco e tecido. Estou sempre pronta pra me deixar corroer no fogo lento, sentada e paciente como monja.
Trago na pele as marcas da transposição: o arame farpado que rodeia minha carne, a brasa nas mãos, as farpas nos dedos. Nada disso me impediu de continuar. Talvez eu seja masoquista ou ridícula mas há em mim vontades imensas de ultrapassar barreiras porque sei que, do outro lado, tem alguém na espera.
Destrui os templos de culto, queimei bíblias e seus velhos testamentos. Ei-me aqui, de joelhos. Despi-me de tudo o que levava. Carrego nas mãos frias apenas um coração que sangra. E tomo conta para que ele não caia. Levo-o manso contra o peito, como se meu fosse. E não me importa a mancha vermelha na boca, ou o gosto de ferro, depois de beijá-lo. Tecelã cuidadosa, faço, por quarenta dias, essa nossa mortalha. Recolho e pergunto ao pó seus desejos. Sei que você é Poros e eu sou Pênia. Não conto o tempo, destruo as justas medidas, os ponteiros, as areias. Se me disser quero, sou capaz de ofertar estes meus olhos

segunda-feira, 25 de junho de 2012

A noite chegou pra ver que ela se tornara rainha e ele, rei. Guardou como lembrança do dia em que a vida em São Paulo se suspendeu pra que os dois existissem. A imagem que ficou por trás das pálpebras cerradas era a de seus prédios (Porque sentia que ambos possuiam a cidade inteira, suas construções, suas esquinas, suas alamedas) quase como que incendiados pelo sol das cinco. Do lado dele, sentiu que tudo que estava distante era fogo e caos. Nada importava. A cidade poderia arder em chamas, os seus carros chamuscarem, as grandes torres de comunicação derreterem, as línguas de fogo queimariam os arquivos, até os confidenciais ou os já mortos, e os documentos diversos. Sorria sozinha pensando na cena. A morte e o desejo andando de mãos dadas, viventes um do outro, na cidade do fogo. O passo seguinte foi pegá-lo pelas mãos, ensaiando tal cena, para um futuro próximo.
Quando fechou os olhos, não deteve o pensamento de que a cidade poderia lamber em chamas fortes, como a que saia do isqueiro pra queimar seus dedos, naquele exato momento. Ambos veriam de mãos dadas o derreter dos edifícios, o desaparecer de pessoas e papéis. Qualquer resquício de humanidade perdido pela voraz labareda. E nada parou o sorriso que surgiu nos seus lábios, então, ao pensar nos dois únicos sobreviventes e em como povoariam o mundo.

domingo, 24 de junho de 2012

Com um cigarro na mão (achado na bolsa, provavelmente de seu visitante da noite anterior e de todas as outras noites), fumava de janelas fechadas – afim de manter só pra si aquele momento, aquele cheiro, aquelas cinzas. Pela pouca claridade que ousava entrar, observava curiosa os males (embora achasse que de males eles nada possuiam) causados por ele. Contabilizava, até então, duas unhas quebradas na fúria, uma meia-calça inteiramente rasgada, diversos hematomas na parte interna das coxas, joelhos e ombros, pulsos marcados por mãos mais fortes que as suas, nítidos contornos de dedos no pescoço e uma queimadura de cigarro, no pulso da direita. Uma rápida olhada no quarto (que não era o seu, nem o dele) a fez perceber os estilhaços de vidro, o rolo de fita adesiva, o monte de roupas empilhadas. Quando levantou, não fez questão de desviar dos cacos. Na parede vermelha daquele quarto alugado só pros dois, marcou com lápis de olho um novo risco. Mais uma noite ao lado dele. Mais uma noite em que se sentia viva, como nunca.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Sentado na minha frente, sua respiração era inquieta. O diafragma que sobe, desce, torna a subir, move os tecidos da blusa. Estiquei os braços pela mesa, na tentativa de diminuir distâncias. Lembrei da cena de Je t'aime, Paris. Sempre achei que éramos como personagens de um desses romances franceses. Tinha a vontade de mover os dedos por sobre a distância, como que sentindo sua sombra, contornando no espaço seu corpo.
Ruínas de madeiras de móveis atacadas por cupins e outras pragas urbanas. A construção inteira parecia querer dizer algo sem encontrar boca. Falava em seu próprio modo: o piso que gemia a cada passo, mesmo que ele não fosse firme o bastante – a sua principal visitante não tinha esse tipo de andar. As janelas faziam grunhidos quando ela tentava fechá-las, talvez porque a casa não quisesse se fechar ainda mais. A porta jazia trancada com cadeados diversos mas a intrusa era ousada, encontrando buracos nas paredes que cavava com as unhas, ávida para entrar. Sabia que ali dentro se escondiam mundos, embora o exterior omitisse certas características. Gostava de passar a mão pelo corrimão da escada, fotografar com os olhos os descascados dos papéis de parede, retirar o pó sob os retratos. Se interessava por conhecer sua história. Sabia que nenhum livro ou opinião de vizinhos iria lhe dizer de modo certo. Só a casa poderia abrir espaço para ela, mandando de propósito um vento que murmuraria em seu ouvido as mais diversas palavras. (E se agora fecho os olhos, o vento da casa vem brincar com meus cabelos).

domingo, 17 de junho de 2012

É a insustentável leveza que se apresenta. Quantas vezes o beija-flor precisa bater as asas para que seu próprio peso seja comportado? O bater-asas constante, o épico esforço para se continuar a voar, para ter garantido o sentido da liberdade. Também batemos incessantemente as asas afim de tentar por segundos sustentar nosso próprio peso e nos mantermos no ar.
Capaz de arrancar todos os meus cílios e os teus
só pra criar desejos
que ficam maiores
assim que nossos dedos se encontram
e você fecha os olhos
pra desejar também.
Esse menino-homem sempre tem uma palavra pra mim
Um perfume forte que invade os sentidos
até quando não tenho mais sentido algum
de nada.
É hábil. Decidido, caminha pé ante pé em seu próprio ritmo
mas sei que nunca pensa em pausas.
São nossos os telhados das casas, os cigarros das calçadas, o embaçar das vidraças.
Memória olfativa não me trai mais. Isso tudo é impulso para a nossa queda livre. Especialistas diriam que cairemos a 200 km/h. Poetas, essa gente antropofágica, diriam que enfim seremos livres. A queda é o nosso império, nosso topo mais alto. O resto é ruína.
Encostado fumando
Ao teu lado
esmurrei paredes
esfolei os ossos da mão
finquei unhas no asfalto chuvoso.
É que eu só podia ter fumaça de cigarro
mas não quem a soltava pra mim.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Conteve-se por 17 anos no uso dos pronomes possessivos pra designar outra pessoa. Não podendo mais, explodiu-se em verborragias fágicas e encheu laudas e laudas de meu meu meu meu meu meu meu meu meu

domingo, 10 de junho de 2012

Se a casa está assombrada
não é por viagens passadas
nem por outros espectros
que não eu.
A pequena fantasma
que quase não sabe ser vulto
mas gosta de te encostar mansinho
enquanto adormece.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Essas ruas vazias da madrugada me dão a certeza de que poderíamos povoá-las feito dois vampiros doentios.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

A vontade de te encarar e dizer
como estava bonito hoje
Mas morrem nos meus lábios as palavras.
(Só não adormece o desejo)

terça-feira, 5 de junho de 2012

Acho que encontrei forma mais sábia de morrer. Tomada de remédios e álcool, só me sobrariam nos bolsos os papéis com teu cheiro, um cigarro molhado, uma chave, pedras de diversos tamanhos.

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Atrasar-me para a vida. "Coitada, perdeu o ponto, saiu sem relógio. A última viagem para a vida deu-se há dezoito anos! Agora a pobre há de andar sem rumo." Mas andar, mesmo que sem rumo, é partir de um ponto a outro. Jorrar toneladas de palavra impensadas nas páginas brancas. Pensar amor, por exemplo, é complicado. Ar-mor, A-mor ( o anti- sentimento.)
O ódio é o amor enfraquecido
O gosto ruim é só um gosto que não é bom o suficiente para agradar a todos os paladares
Um coração em chamas, entretanto, será sempre um coração em chamas.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Uma cartela inteira de Lexotan
Aquela dose prometida de cianureto
um tiro na cabeça, queimar no fogo lento
(Dos nossos cigarros?)
Salto da varanda, morte letárgica, dose do próprio veneno.
Será que existe camisa de força para dois?

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Num quarto fechado
deitada de bruços
na cama grande demais pra seu pequeno corpo
Coelho frágil
Seu caçador já vem
Vagaroso
Com seus sapatos pretos
e o cigarro nos dedos.
Não ofereço resistência e coloco o meu melhor vestido mesmo que no fundo saiba que ele acabará no chão.
Não poderia dizer que tudo deu errado para os dois. As palavras escolhidas seriam: Tudo deu incerto para os dois. Pode ser que seja pode ser que fosse pode ser que
O tempo pode ser trocado por tempo.
Equivalências ambivalentes e distantes
Eu gosto desse uso de palavras incólumes difíceis agradáveis ou não tanto
Parece que todo texto se torna especial
de leitura difícil
incompreensível como a própria autora
dirão os especialistas
analisando post mortem.
Porque hoje só quero beber do copo do corpo de alguém sem nenhum pudor. Menino de peito aberto, posso vê-lo fumando. Seu casaco preto úmido não se sabe se de choro ou de chuva. Um hálito, um outro corpo que também tem seus cheiros seus fluidos suas salivas. É essa saliva que surge antes do alimento, preparando o caminho para o deglutir. A seiva, a carne fresca, cordeiro abatido, correndo pra morte. A dentada gulosa do caçador solitário.
Sobretudo preto cruza as pernas e fuma, paciente Ele tem essa calma dos mundos o segurar firme do cigarro nas mãos o olhar sobre esse fruto que caiu.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Menina com joelhos ralados
sob a meia fina branca, rasgada.
Band-aid nos cotovelos
e saia rodada.
Andando pelo wild side de Lou Reed
Procurando pelo seu James Dean
ou seu grande Humbert H.
Com metros e metros de renda
e laços de cetim no cabelo
Se perde nas ruas pra que alguém a encontre
e talvez leve pra casa (certamente não a dela) esse animal perdido
com vontade de cuidar e fazer posse
Seu material apertado contra o peito
cadernos e livros escolares
mastiga chiclete não pensa em mais nada
Faz a bola, olha para algum deles
O rosa claro de menina nova
cheiro de tutti-frutti, primeira infância
e lábios tão vermelhos
Sabe que nenhum deles têm a coragem de se aproximar
e os machuca à distância
mexendo no cabelo
e piscando os olhos.

domingo, 22 de abril de 2012

Andamos de mãos dadas
as if we were the dreamers
só faltava correr por museus.
Senhoras bem arrumadas olhavam
Julgavam os 5 rapazes na noite
Sem guarda-chuva embora caisse uma garoa fina
Desarrumando cabelos e roupas
Que voavam e pareciam diminuir com o mau tempo
Segurando forte o braço um do outro
as mãos, o choque térmico. (sempre há aqueles por onde o sangue corre melhor)
Sou a das mãos frias, mas ninguém se importa, embora eu ache sempre de bom tom avisar antes do toque.
Eu quero um amor de tirar pedaço, um amor de salivar sangue, arranhar as costas, machucar cotovelos. Quero amor de poder, amor de bater portas e sair pela garoa, amor de marcar pra doer (porque está escrito que todo amor tem que ser assim.). Fazer posse, segurar o braço, demarcar com unhas, retirar pedaços. Hematoma azul, amor de acordar na mesma cama com rímel borrado, amor de manchar o batom na fúria, pescoços e costas. De fogo (não só dos cigarros), de cheiros (não só dos perfumes) de troca (de histórias e fluidos), com diálogos saídos de Godard, de costas arqueadas, e mãos atadas (umas nas outras)
Corremos todos sob olhares
garoa fina desmancha disfarça nos faz inalcançáveis
Correndo contra o vento de mãos dadas
As senhoras nos olham, assustadas
Enfant terrible na noite
De meias rasgadas e batom vermelho
Fumando a cartela com dedos longos
Esmalte descascado nas unhas
he says he likes me that way.
Lendo Borges e Hermingway
Eu queria saber falar francês
Tomando conhaque
roubando do teu copo
bebendo da tua boca
De mão em mão

terça-feira, 17 de abril de 2012

Ele disse em tom de brincadeira. Mesmo sabendo, uma certa angústia me leva à varanda noite após noite na esperança da ordem da descida. A ideia da mudança abrupta e não-pensada, do ato inconsequente, da nova vida, do novo cativeiro. Saio das asas de mãe pra armadilha que ele preparou pra mim. Eram boas as iscas e o jeito de conduzir os fatos. Com determinação, faço as malas. Não é preciso muito: uns poucos papéis e lápis da vida antiga acho que dão conta. Na nova gaiola, ele cuida de mim. É preciso queimar as roupas, o rosto antigo, os velhos hábitos. Nenhum carro é o dele, nenhuma silhueta de homem se assemelha. Mesmo em tom de brincadeira, eu ainda espero que me deem ordens. Não jogarei tranças ou lençóis para a descida mas, orgulhosa, irei ao seu encontro, buscando os grãos que espalhou pra me atrair.
Conheci aquele que fala do silêncio, dos ruídos e do amor.
Há sempre aqueles que têm medo de falar de amor.
Há sempre aqueles que falam e não sentem
Há sempre aqueles que sentem mas se calam.
Conheci um rapaz que ousou falar de amor.
Não com felicidade ou conhecimento
aprendia a amar tanto quanto eu: nas migalhas e nas letras. Ou talvez nas migalhas de letras que andava jogando às páginas para formar alimento concreto. Até hoje só consegui metades. Talvez ele concordasse comigo.
E tínhamos o espaço para contar. Eram os cigarros amanhecidos dos amantes, o café velho cheirando pela casa vazia, os restos que o outro não levou. Nem de mim, nem dele.
Ontem eu fui à rodoviária me despedir de algo que não sei o que mas que se foi, tive a certeza batendo em mim como um murro, latejando na cabeça assim: algo morreu. O relógio da rodoviária, tão perto, tão longe de tudo, marcava 14h e eu só fiquei parada, no meio do trânsito de malas e histórias, sem ter para quem contar a minha. Quis pegar um lenço, sacudir no ar, fazer cena.
Talvez devessemos parar com as bebidas, com os grandes goles sorvidos pra calar a sede de dentro/ de fora. Essa sede de palavras pra sair, de amor pra se contar, de tristeza líquida. Ele concordaria. Talvez devessemos parar com essas conversas sobre o passado, essas questões todas que ninguém se faz. Ele também sabe o quanto pesa a palavra escrita. Não desmancha no ar nem se apaga mas solidifica e atormenta. Talvez devessemos parar com a divagação ébria e apresentar de uma vez por todas nossa melhor cara, respondendo aos preocupados um sereno tá-tudo-bem-cara e continuar sorrindo calmo. Porque parece que não se sabe lidar com o que não se entende, uma cara amassada de noites mal dormidas e amores mal lavados incomoda, antes de preocupar.
Não somos personagens de história alguma
nem esse retrato será feito por ninguém
é que eu e ele somos assim, já velhos.

Conheci um garoto que era como eu
Perguntando ao pó pra obter respostas
e tendo diálogos incríveis comigo, na lacuna do silêncio.

domingo, 15 de abril de 2012

Quando vejo essa modorra das tardes de domingo em S. Paulo, as bicicletas e corpos desnudos cansados do terno e do relógio, palavras como especulação imobiliária nada significam.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Não sabe quando a luz vai voltar. Acende vela, faz planos, anda pela casa. Vai à varanda, se sente viva e sem amarras, pisa descalça, lê poemas usando a luz das velas e acha tudo muito romântico e sedutor. Canta só, descobre que ainda pode fazer sentir os outros quatro sentidos e ignora a visão. Faz-se fantasma a arrastar grilhões e quase tromba com as outras pessoas. Se sente dona de si. Até que vem o anseio, o desejo pela luminosidade artificial e cômoda, o logo-logo-ela-volta, a espera ociosa, o medo de dormir sem ela - como há tempos não ocorria. A falta de luz é como o amor.

terça-feira, 27 de março de 2012

Não há de se apressar o tempo. O tempo anda manso e de mãos dadas. Eu e ele, esse senhor de extremos – o tempo – fizemos as pazes. Precisamos deixá-lo nas suas próprias leis, recolhendo vagaroso os grãos que solta. A calmaria sem torpor, sem languidez.
Já fiz um acordo comigo mesma, assinei o contrato, tratei bem o coração. Sou sua.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Amor é acidente
desvio do percurso
erro na rota
curva perigosa
dirija com cuidado reduza a velocidade é obrigatório uso do cinto de segurança.
Não segui nenhum desses
Amor é acidente
o não ler placas
a desobediência de sinais claros
A 500 metros.

terça-feira, 6 de março de 2012

Acostumada com o corpo dele do meu lado. Sem sobressaltos mas do jeito leve que eu sempre procurei. Cada gesto é visto, é sentido, é só nosso. As mãos não precisam de grande esforço pra se unirem – tampouco as bocas. As línguas fazem cócegas, os pés se encontram - apontados um para o outro. O cheiro de perfume bom que fica no corpo ainda quando deito pra dormir. O afago, por menor que seja, que me marca como brasa. Já sentir falta dos dedos faceiros que se encontram e desencontram, do tatear meloso pela mão do outro ao lado, do saber a mão presente, do sentir a boca e a hora. Consigo quebrar os ponteiros, mexê-los, ser dona do tempo. Nesses dias, o tempo é de ser leve, é de ser claro, manhãzinha nova sempre, cheirando a leite fervido e café recém-passado. Feito com muito amor, nosso.

domingo, 4 de março de 2012

Seguro a minha própria mão no escuro. Não há necessidade de se fechar os olhos mas eu fecho para tornar mais real. A mão direita é sempre a tua, que acaricia e brinca com meus dedos. Esse encaixe perfeito que as nossas mãos têm. Anatomia sentimental e crônica. Nesses tempos de cólera, há o amor. Porque o amor nada mais é do que doença: mata mais, consome mais, transmite mais a loucura nas veias azuis dos nossos corpos. Deixa o corpo vivo, a mente insana e o cérebro inválido. Potencializa o que é ignorado (dizem os médicos). Não tem remédio, bula, receita, comprimido. Não segue a prescrição médica, a ata formal. E, como na peste, mata.

O amor é demônio manso, maltrata devagar, age vagaroso mas domina o organismo. Pula de célula a célula, destruindo e destituindo-a das funções vitais. Ainda que aparentemos ter vida. Não existem profilaxias e de nada adianta lavar bem as mãos, os olhos, não andar descalço, evitar contatos. O amor é facilmente transmitido sendo qualquer carta, poema, fala ou olhar mais intenso logradouro perfeito para ser contagiado.
O nome presente no livro que me deu origem, de certa forma. Já conhecido e lido tantas vezes. Na minha vida, nada é coincidência. O de vida leve vem para retirar os antigos pesos em meus ombros exaustos. Eu, pobre Teresa, quero ter algo para oferecer que nada compartilhe com a antiga vida pesada que possuía. Já o vejo em meu entorno, seu espírito livre, ensinando o que nunca me ensinaram e sentindo e dizendo palavras de silêncio. Sintaxe, simbiose, e súplica orgânica. Não liquefaz, porque não deve. Cinco minutos e eu já me sentia perdida / encontrada. Criança no cesto entregue à própria sorte. Tudo depende da referência-preferência. Já pego teu jeito teu dengo, escrevo o que vem. Empenhei o coração e o sentimento. Espero que voce os dê preço e vontade.
É que falta luz em casa e eu comecei a pensar assim: uma palavra contrária, antônima, nada mais é do que a outra palavra mais forte. Nada é negação ou oposto mas partem sempre da mesma raíz. O ódio é o amor enfraquecido, a loucura, o amor levado ao extremo. Só você teve coragem para olhar nos meus olhos. Seria tudo mais fácil se eu tivesse mais coragem e menos medo ou mais medo e menos coragem. No fim, é a mesma coisa. As palavras têm todas uma origem só. Quem sabe? Aquele que inventou tudo isso deveria ser milionário. O inventor das palavras, grande mago dos advérbios, senhor do coração. Talvez ele ande por ai mendigando adjetivos, como migalhas. Patentear sentimentos, o amor - marca registrada em cartório.
A luz deveria voltar. Quase cega, escrevo nessas folhas mas o pensamento não queima ou se apaga ou entra em curto circuito como a luz da rua. Escrever seria poético, não fosse meu desespero.
Entre olhares. O que há na lacuna do alcance de um olho e do outro? Que é que se acha entre duas palavras soltas, no espaço criado entre elas? Do que é feito o silêncio? Talvez seja você o par de Joana. Aquele que repousa lentamente em seus ombros, dialogando mesmo que sem fala. Não sei quantas calçadas nos separam. Quantas casas, quantos paralelepípedos, passos, polegadas, fios de cabelo ou qualquer que seja a unidade de medida. Te sinto saudades, te sinto vontade das mãos. A falta de luz faz com que eu aprenda a viver sem seguir certos sinais visíveis. E eu me sinto de novo aprendendo a ser guiada.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Piquei papel
te fiz confete
te joguei pelos ares
sobrevoou a cidade
Feito ave
sem se juntar mais.

No abre-alas, te fiz destaque
e te larguei.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Carnaval sozinho
Semana sambando
semana bebendo
não lembrar nem nome
endereço, RG.
(...)
Quarta-feira de cinzas
me esqueci na sarjeta
mas lembrei de você.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

É quando me ligam que penso talvezeletenhameunúmero. É quando desconheço o número e mesmo assim atendo com um habitual alô e nada me respondem do outro lado. Nessas horas, penso: é ele, é ele que conseguiu revirar fichas, currículos, documentos e decorou aquela sequência de números anotando na mão como sempre fiz. Mas nada me dizem do outro lado, nem respiração se pode perceber. Eu falo mas não me respondem. Desligam. Ponho o telefone no gancho e espero o novo engano. Pensando em desespero que não é mais do que um modo de matar as saudades.