segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Abria o dicionário sempre na mesma página. Era pra não esquecer, mesmo que já tenha decorado, o que era saudade. A rigidez da explicação culta, a síntese em poucas palavras daquilo que ela nunca conseguira definir e trazia abstrato no peito. Saudade. Decidiu colar na parede, lá ficou.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Me encontro acamada. Nesse domingo chuvoso a única coisa que quero é escrever versos.

De xícara em xícara, consumo cafés com avidez enquanto procuro em páginas de livros amarelados a solução para todos os problemas. No meu caso, do amor.
Penso em cortar o cabelo. Uma mudança no por fora quase sempre vem acompanhada de uma mudança no por dentro. Não é real, a mudança. Mas alimenta a ideia. Ideias alimentadas valem mais do que a parte real delas.

Penso em jogar fora os papeis de meu quarto, as miudezas guardadas em caixas. Mas de nada adianta a limpeza quando eu mesma não posso me jogar pra ser recolhida ou reaproveitada.

Além do mais, a falta de ar nos pulmões me impede. Sempre que fico doente me vem os versos de Augusto dos Anjos: Profundíssimamente hipocondríaco...

Porque eu também sou filha do carbono e do amoníaco. Porque eu também, ao longo dos anos, me transformei em monstro de escuridão e rutilância.

Essa mania de querer ver poética no feio e no sujo. Essa mania de achar que posso transformar o cinzento dos meus dias com as palavras rebuscadas e a quebra da ordem canônica. Mas foi assim que joguei pão aos pombos, alimentei esperanças, me acreditei limpa, e melhor.

E foi com a falsa certeza do que eu era que ele me veio.
O silêncio criado na mesa servia pra deixar-me poesia. O silêncio é uma forma de amor, eu pensava. De fato, o silêncio é uma das formas mais puras do amor. Não podia fazer nenhum barulho. Treinava para que minha respiração conciliasse com a dele, o peito no mesmo ritmo, no mesmo movimento para que talvez ele pensasse que até nisso éramos parecidos.
E não era permitido ao amor a respiração ávida e penosa que eu sempre tinha, aqueles suspiros ruidosos que, desde nova, aprendi erroneamente como sintomas de amor.
E não fazia nada que pudesse ser brusco, com medo de assustar o momento e fazê-lo sumir. Cada movimento das mãos sobre o guardanapo, cada ajuste no cabelo, cada movimento de cílios ou da língua pra umedecer os lábios era com uma calma que não possuía. O outro par de olhos, a outra boca à espreita, na minha frente, deveria adivinhar os meus gestos, sem gerar surpresa, como se fosse assim pra vida inteira. O amor, descobri tarde demais, o amor é reconhecer os gestos. O amor é a união dos passos lentos por baixo da mesa, os pés em sincronia como na dança, as mãos com leveza que se movem. Sem expectativas penosas, sem sobressaltos. É reconhecer a sombra, o recorte do corpo do outro. Agora movem-se as mãos com carinho. Agora ele deposita a palma da mão aberta na mesa e eu penso assim: que bonito que é o espaço criado entre os dedos. Que bonito que é o modo como uma mão foi feita pra encaixar perfeitamente na outra. É isso que se espera da mão, nada mais – que se encaixe em outra.

E a minha mão vai de encontro à dele, como ele anseia que aconteça. E é o momento em que levanto o olhar para os dele e ele já sabe e espera sem ansiedade, só com a paciência de quem sabe o que vai acontecer – porque uma das formas de amor é a espera do que se sabe certeiro.

Fico pensando em diálogos dos filmes de Godard, me vem à cabeça aquelas frases todas de livros que devorei com vontade pra que chegasse o momento em que as diria pros olhos dele. O momento veio, não fiz. O amor não precisa de diálogo - como uma sabedoria milenar. Diferente de nós humanos táteis, necessitando de palavras para preencher lacunas, com atropelo.
Ele ainda me olha. Talvez também pense em todas essas coisas. Talvez pense em Garcia Márquez, que tanto lemos devoramos e quase ficamos míopes com os livros debaixo de uma luz fraquinha, pra não acordar os outros habitantes da cama, da casa, da cidade.
Porque ele, assim como eu, decorava e transformava os personagens, caindo em deleite e riso frouxo ao imaginarmos como eles.

Penso em tudo isso enquanto estamos na mesa. Coloco o cabelo pra trás da orelha, ele já esperava o meu gesto. Sem surpresa, sorri. Retribuo. Agora, ele vai apertar os olhos tão pequenos e acariciar a mão que continua unida na sua, com suas unhas em formato de leque – um pouco roídas. Pedimos café: o de sempre? O de sempre, respondo.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Mas ainda é tão cedo, não são nem 20h e já estou em um estado deplorável. Coloquei as músicas, selecionadas a dedo. Todas todas todas fazem tua cara surgir na minha frente e às vezes a sensação é tão forte e real que juro que estendo os braços pra frente, escrava eterna, pra conseguir seguir o contorno desse teu corpo que eu nunca tive por mais de segundos, numa esperança de conhecê-lo melhor. Chico Buarque canta que apesar de você amanhã vai ser outro dia. É mentira (…)

Apesar de você, não. Não tem dia, não tem amanhã, não tem outro. É essa a palavra: outro. Não tem...

Mas é ainda tão cedo, não é nem dia dez e já estou em angústia, largada no tapete do quarto. Pelo menos não me doem as costas. (Eu não me importaria, se doesse.) Já ando em frangalhos, o cabelo desgrenhado, maquiagem borrada de choro. Coloco a música mais alto pra disfarçar os soluços. De nada adianta, quando eu sei o que se passa. (E só eu, às vezes é a certeza que tenho. Na maioria das vezes, nem isso.)


Ai, como eu te amo... esse laço no meu dedo, a fitinha colorida e trivial, acho que você não percebe, acho que você se finge Édipo, eu sempre procurando referências, eu sempre procurando afinidades ou as criando, porque é sempre a proximidade que anseio com a ponta dos dedos. Você não percebe, você não vê, a fita rosa feito nó que machuca, de tão apertado. Labareda em minha carne. Labareda em minha carne. (…)

Sou toda artérias. Sou a matéria transfeita, pedaços do coração. Sou todos os livros, os artigos, as músicas, os poemas, apelidos e toques trocados, miudinhos e escondidos, por isso mesmo mais intensos.

Euforia extremista, disforia velada? Talvez o amor seja a busca de acontecimentos. E só ele. E mais nada.


Diálogos invisíveis.





Não é nada.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Cabelos em desalinho, o batom vermelho, o sapato de salto. Usava seu sobretudo, fazia frio. São Paulo nesses dias a lembrava Paris - Mesmo que nunca tenha conhecido. Era aquela garoa fina e o chão molhado, a atmosfera úmida e com um sol tímido. Saía de casa pela manhã bem cedo, pra ter aquela sensação de que se aproveitara o dia.

Seu salto alto fazia barulho, não reclamava. Sentia-se adulta, sentia-se mulher com o salto em seu tac tac tac contínuo por todas as calçadas, o movimento de sua saia que acompanhava o ritmo do passo.

Nos fones de ouvido, Edith Piaf vinha em um crescendo cantando seus erres em Non, Je ne regrette rien.
O eufórico não pode pertencer ao mesmo local que o disfórico. Sendo assim, deve-se destruir ou fazer com que um deles se dissolva. Seguem destinos que, por vezes, se cruzam, mas tão logo o encontro acontece, voltam aos seus roteiros originais, sem abandonar a trama. Não podem acontecer simultâneos.

Eu não sei, mas me diria disfórica. Sempre há o elemento do erro, persistente e impregnado que não me larga. Mas isso não importa. Mesmo que me julgasse eufórica, sou eu que parto. Sou eu que abandono o território que me incubiram. Sou eu que nunca combino.

Sabendo disso, me preparo pra partir. Preparo, não. Não sei escolher palavras. Mas não diria preparo. A preparação eu nunca tive, não terei. Tempo pra isso tive, e não quis. Será como vertigem, extremo do precipício. Aprendizado de necessidade. Me jogo e aprendo a voar.

Mesmo disfórica, a dialética não acontece. Ele é por demais meu oposto. Ele é por demais feito de campos semânticos diferentes: profundo e obtuso. Eu, discurssiva, superficial, tendo como base o erro.

Abandono o campo de forças de anos, abandono porque o tempo já me corroeu a face, o tempo anda marcado no pulso e nas datas comemorativas que ele tanto faz questão de lembrar. (...)
Coloquei a fita de cetim no dedo da mão esquerda. É rosa, como um doce gostoso.
Só depois de colocada, a epifania me veio. “Está tentando não esquecer do que com essa fitinha no dedo?” me perguntaram. E então lembrei de quando eu era criança e minha avó dizia a mesma coisa. Pra se lembrar de algo, pra dar ordens à mente, basta atar uma fitinha no dedo. A fita faz com que você olhe para as mãos e lembre, sempre. Eu tenho ele, pra lembrar. Eu sempre tive ele pra ser, assim como em um conto de Dalton Trevisan, a faca no coração.