segunda-feira, 10 de outubro de 2011

O outro nada mais era do que uma continuação. Pensava-o como rascunho, esboço do primordial. A forma ideal era o dos símbolos, o outro era como um ramo, caule preso, anexo.

Ainda tinha suas formas feitas de linhas emaranhadas, fios de cabelo, eletrosfera. Eram as mesmas conversas, os mesmos livros trocados. Ele supria o sentimento que faltava, enchendo o peito dela da seiva bruta que pedia como planta ao sol. O primeiro, epigênese, era o eleito como ditador eterno, no seu regime totalitário – o coração.

Não sabia se o novo seria símbolo. Mas ela que iria escolher se seria protagonista. Ela iria impor-lhe papéis e máscaras, num amor pequeno e transfeito, que não jorrava de fonte limpa e farta mas mesmo em quantidades pequenas, era alimento.

O significado, o signo, quem dava era ela. Pelo menos no reino do coração, ela tinha seus ofícios. Mesmo confusos ou sem ordem lógica, sabia o que era cada coisa, pois as sentia.
E era bonito quando pensava em dizer aos primórdios, depois de anos: Te amei com cada célula do que fui. Te amei de um jeito desesperado e sem glória. Mas cada poro sentiu. Mas por você e pra você que eu era alguém. Mas por você e pra você que eu me humanizava cada vez mais, sem me perder dentro de mim.



Sabia que olhava pro primórdio com olhares do presente. Que o presente soava como desespero e voragem, que tudo parecia imediato e maniqueísta. Presenteísmo puro, hora marcada, unha fincada na pele pra marcar cada sensação, pelo prazer puro de durar mais. Sabia que pelos olhos do presente ele era tudo o que ela queria conhecer, o começo e o fim, a vertigem. Palavra bonita: Vertigem. Sensação de tontura, de pé próximo ao ponto máximo, queda imediata. Vertigem. Vértice. Vertigem. Vulcão de cinzas amorfas, era ela. Ele lhe dava a sensação de insegurança, de proximidade com o precipício. A vontade da queda, a hesitação, aquele cai-não-cai, era ele. Se caísse, inevitavelmente deixaria de ser.
Sabendo que o via desse jeito, lhe perguntava quando é que seria capaz de olhá-lo com olhos de passado, nostálgicos - com toda a calma de águas que isso lhe traria ao peito, sem o tremor das pernas. A resposta lhe pareceu abstrata, longilínea, de palavras próprias.
Sentada em um banco, no meio da rua. Naqueles lugares incomuns. Os lugares comuns me cansaram, pois lá nunca consegui ver ninguém. Não realmente.

Estaria lendo um livro – talvez Gombrich, talvez Argan, quem sabe Ionesco ou Guy Debord ou um livro com trabalhos de Modigliani e Egon Schiele. Talvez eu esteja só desenhando, rabiscos com um lápis qualquer enquanto observo uma pessoa um prédio meus próprios pés.

E no meio dessas divagações, ele apareceria. Sentaria do meu lado no banco, olharia para mim disfarçadamente, pedindo licença ao sentar – educado desde o primeiro momento- tirando também um livro, um caderno, um projeto. Olharíamos um para o outro como quem não espera nada – porque sabemos que nessa cidade, o esperar é perigoso. Até que toma coragem e se aproxima, repara de repente nas mãos sujas de tinta que carrego como troféu. Você tem mãos lindas – ele diz. Sua voz baixa como sussurro, certeira.
...

Ele conheceu tudo o que eu tinha. Eu me entreguei já no primeiro momento sem nem perguntar quem ele era. Tinha um nome, tinha, e era bonito... acreditei na voz dele mesmo sabendo que poderia mentir a qualquer momento. Não sei se ele era filósofo, artista, ator, poeta. Quem sabe ele era um conjunto de todas as coisas. Carregava os olhos doces e carentes, a figura imponente e altiva e as mãos, as mãos eram como as minhas, sujas de tinta.