domingo, 26 de agosto de 2012

No chão, o tecido que o cobria. A faca suja de sangue pendeu da mão de Tábata e caiu com um som seco no piso de madeira do banheiro. Era branco. Os papéis que ele escrevia estavam com marcas de dedos, a boca se entreabriu como num quase-grito que não teve força de sair. A outra mão de Marco Antônio segurou com força a borda da banheira. Era branco. Um último olhar dirigido a ela deu-lhe arrepio. Um eco de frase ficou solto no ar úmido de vapor do banho. O cheiro ocre que havia nas paredes, um movimento que ficou pela metade. Era Branco. Era branco. E se tornou vermelho. Por ela.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

A mão direita, a mão direita. Ela sabia que a devia cortar e jogar fora. O fez. A passagem da bíblia veio como epifania. Não queria o corpo todo no inferno. Sobraram-lhe as marcas na outra mão como chagas de um Cristo. Carregava sua coroa de espinhos com glória. Era rainha e, ele, seu rei.
Os olhos que são bons têm luz. Ela encontrou a luz do seu próprio. Era luz de chama mas brilhava e a fazia um ser humano bonito.

Três fogueiras servem como sinal universal de pedido. Sabia que era o primeiro e o último que receberia. De maneira alguma quis que as três fogueiras continuassem acesas. Correu ao encontro, explodiu com nitroglicerina as velhas celas. E riu. As chamas continuaram queimando. Não mais pedido de socorro, mas plano completo. O fogo comeu o passado e destruiu as cruzes, as masmorras, os arquivos. Nem o pó ou a ruína sobraram da Bastilha para entrar pra história.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Andava na rua como se estivesse decidida a morrer. Mesmo Tábata que não era nunca de chorar na frente de alguém teve que cobrir o rosto no braço pra esconder as lágrimas. Seus olhos estavam encostados contra o couro e com eles fechados podia jurar que o casaco era o dele. Desceu do ônibus aos tropeços, no ponto errado. Não que não soubesse onde estava, só queria andar mais. Perdeu a conta de quantos carros buzinaram por ela ter atravessado sem olhar para nenhum lado. Sua filosofia de vida era a de que se quisessem parariam para que ela passasse. Nesse dia em questão não sabia se queria que parassem. Sua mente dizia que não. Talvez fosse um bom modo de desaparecer por completo. O pensamento que vinha era o de que as rodas fossem, quem sabe, continuações das pernas. Ou a invenção dos homens para parar de usá-las. Sem utilidade, atrofiariam uma hora ou outra. Tudo o que não se usa, atrofia-se. O que acontece, então, com o que se usa demais? Desenvolve-se? Tábata não sabia. Desenvolver era evoluir e ela não achava que podia. Ocorreu-lhe que talvez quisesse seu coração atrofiado. Era impossível. Tinha a certeza de que esse era seu músculo com mais uso – seguindo fielmente a lei de Lamarck. O vento forte que fazia batia no rosto de choro e secava as lágrimas. Esse vento forte tinha nome: Marco Antônio. Aquele homem era o vento, o som do freio dos carros que passavam por Tábata – a louca – na grande avenida. A salvação e sua ruina. Era tudo. Era um ponto na página em branco. Lembrou do seu poema de infância. Os relâmpagos vermelhos que o céu inteiro incendiavam. Era outra a origem da tristeza. Nada vinha de fonte limpa, como a deles. E era outro o canto que acordava o coração para a alegria. Não lembrava a ordem. Mas sabia que era tudo ele. Ele em cada letra. Ele o canto. Ele a voz. Ele o coração. Como uma roda. Ela era a perna. Então vem o baque. O encontro. Metal indo contra orgânico. Barulho de relâmpago atravessando o céu. A boca de Tábata se abre com dificuldade para gritar por Marco Antônio. Como um demônio, ante seus olhos. Pela última vez.

domingo, 5 de agosto de 2012

Era dessas mulheres que queriam tudo da vida. Em uma das habituais noites em que andava por aí com sua inseparável jaqueta de couro e suas infinitas correntes e alfinetes – que nada mais eram do que seu modo particular de dizer que qualquer aproximação desnecessária seria seguida de morte lenta e dolorosa – o encontrou. O relógio do pulso de um estranho marcava 3h da manhã e ela o viu na entrada de um clube noturno com um beijo em neon vermelho. Os faróis dos carros refletiam no rosto daquele rapaz, deixando-o tentador.

Ao se aproximar lentamente, analisou os gestos, planejando seus atos. Ofereceu a ele tudo o que tinha em troca de apenas uma noite. Mesmo que tudo o que tinha não fosse seu. Tábata, era esse seu nome, era vista pelos outros como uma encrenqueira que vivia à margem de tudo. Não tinha emprego fixo, nem nada que fosse possível usar essa palavra. O dinheiro com que pagaria o rapaz pela noite, conseguiu roubando dos casacos deixados por senhores e senhoras da alta sociedade para que ela guardasse ao entrar em restaurantes chiques. Eram tão ricos e estúpidos, ela dizia, que não reparariam no sumiço de 500 dólares, de um cartão de crédito ou mesmo da foto 3x4 de algum familiar da carteira. Nada importava. Era só conseguir outros.

Ele aceitara a oferta. Tábata não fazia perguntas, mal falava. Não estava interessada em saber nada sobre ninguém mas se viu tentada a perguntar o nome daquele estranho de sorriso bobo. “Marco Antônio” - obteve como resposta e não pôde sentir se ele a estava enganando ou não. Respondeu, sincera, como se chamava e foi surpreendida com um riso frouxo do outro que lhe disse:

-Tábata, a Gazela, nome muito incomum para uma mulher que aparenta ser devoradora como você, não acha? É um cordeiro em pele de lobo.

Viveram juntos por anos e anos. O único objeto que possuía era uma caixa de madeira, indiana, comprada com seu próprio dinheiro, contrariando tudo o que pensava sobre isso. Guardara um pedaço da camiseta dele que rasgou na primeira noite e em todas as outras. Seus bilhetes, os fósforos que acendiam os cigarros de ambos, um vidro com sangue, alguns dentes.

Quando soube da morte de Marco, Tábata entrou em uma daquelas crises que a acompanhavam. Entretanto, sabia que não conseguiria quem a tirasse daquele estado.

No mesmo dia, horas depois, seu corpo foi encontrado no lago do Parque Ibirapuera. Vestida com sua jaqueta de couro surrada, trazia no dedo médio da mão esquerda uma fita de cetim preta, nos braços, a caixa de madeira e nos bolsos do casaco, pedras de tamanhos diversos recolhidas de todos os lugares que os dois já estiveram e prometeram incendiar juntos.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Em sua última crise de auto-destruição, Tábata se queimou três vezes no pulso com um cigarro seu, furou as orelhas sem nenhuma forma de anestesia - esquentando as agulhas velhas da mãe na boca do fogão (e achava engraçado dizer boca do fogão, como se causasse nela uma tentação em beijá-la e ver se era como as outras bocas que conhecia), fincou as unhas nas coxas causando feridas e, julgando que ia perder a sensibilidade na região, cortou todas as pontas dos dedos com seu canivete - herança de família.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Na rodoviária fiquei parada. No trânsito interminável de roupas e histórias, eu não tinha ninguém para contar a minha. Também não possuía rota definida ou fio de lã que me mostrasse, tal qual Teseu, a saída. Tampouco conhecia a entrada, o que me fez ficar perdida no meio das duas pontas. Parece que é assim por muito tempo: perdida entre as duas pontas. O meio, o mediano. Dizem que a felicidade está na certa medida. Mas nunca acho a razão de nada nem chego a fim nenhum. Não lembro como segui até a rodoviária mas, ali, na justa medida de tudo, parei pra contar o tempo sem olhar relógio.