terça-feira, 26 de junho de 2012

Salomé rendida beija a face de seu homem morto. O último banquete, mais delicioso do que qualquer outro que já tivera. Num surto, leva os dedos à boca, manchados do sangue e embebidos da saliva daquele que lhe entregou a vida, pra sentir seu gosto. A cabeça de João Batista jaz na bandeja de prata. Ela sabe que é ali que deve repousar – ao seu lado.
Não há deus que desça sobre nós. Ou sobre mim. Não há velhos testamentos. Os evangelhos de nada me servem, nem os antigos ensinamentos. Sei que com cada gesto preparo esse ninho pra nós dois – feito de sangue seco e tecido. Estou sempre pronta pra me deixar corroer no fogo lento, sentada e paciente como monja.
Trago na pele as marcas da transposição: o arame farpado que rodeia minha carne, a brasa nas mãos, as farpas nos dedos. Nada disso me impediu de continuar. Talvez eu seja masoquista ou ridícula mas há em mim vontades imensas de ultrapassar barreiras porque sei que, do outro lado, tem alguém na espera.
Destrui os templos de culto, queimei bíblias e seus velhos testamentos. Ei-me aqui, de joelhos. Despi-me de tudo o que levava. Carrego nas mãos frias apenas um coração que sangra. E tomo conta para que ele não caia. Levo-o manso contra o peito, como se meu fosse. E não me importa a mancha vermelha na boca, ou o gosto de ferro, depois de beijá-lo. Tecelã cuidadosa, faço, por quarenta dias, essa nossa mortalha. Recolho e pergunto ao pó seus desejos. Sei que você é Poros e eu sou Pênia. Não conto o tempo, destruo as justas medidas, os ponteiros, as areias. Se me disser quero, sou capaz de ofertar estes meus olhos

segunda-feira, 25 de junho de 2012

A noite chegou pra ver que ela se tornara rainha e ele, rei. Guardou como lembrança do dia em que a vida em São Paulo se suspendeu pra que os dois existissem. A imagem que ficou por trás das pálpebras cerradas era a de seus prédios (Porque sentia que ambos possuiam a cidade inteira, suas construções, suas esquinas, suas alamedas) quase como que incendiados pelo sol das cinco. Do lado dele, sentiu que tudo que estava distante era fogo e caos. Nada importava. A cidade poderia arder em chamas, os seus carros chamuscarem, as grandes torres de comunicação derreterem, as línguas de fogo queimariam os arquivos, até os confidenciais ou os já mortos, e os documentos diversos. Sorria sozinha pensando na cena. A morte e o desejo andando de mãos dadas, viventes um do outro, na cidade do fogo. O passo seguinte foi pegá-lo pelas mãos, ensaiando tal cena, para um futuro próximo.
Quando fechou os olhos, não deteve o pensamento de que a cidade poderia lamber em chamas fortes, como a que saia do isqueiro pra queimar seus dedos, naquele exato momento. Ambos veriam de mãos dadas o derreter dos edifícios, o desaparecer de pessoas e papéis. Qualquer resquício de humanidade perdido pela voraz labareda. E nada parou o sorriso que surgiu nos seus lábios, então, ao pensar nos dois únicos sobreviventes e em como povoariam o mundo.

domingo, 24 de junho de 2012

Com um cigarro na mão (achado na bolsa, provavelmente de seu visitante da noite anterior e de todas as outras noites), fumava de janelas fechadas – afim de manter só pra si aquele momento, aquele cheiro, aquelas cinzas. Pela pouca claridade que ousava entrar, observava curiosa os males (embora achasse que de males eles nada possuiam) causados por ele. Contabilizava, até então, duas unhas quebradas na fúria, uma meia-calça inteiramente rasgada, diversos hematomas na parte interna das coxas, joelhos e ombros, pulsos marcados por mãos mais fortes que as suas, nítidos contornos de dedos no pescoço e uma queimadura de cigarro, no pulso da direita. Uma rápida olhada no quarto (que não era o seu, nem o dele) a fez perceber os estilhaços de vidro, o rolo de fita adesiva, o monte de roupas empilhadas. Quando levantou, não fez questão de desviar dos cacos. Na parede vermelha daquele quarto alugado só pros dois, marcou com lápis de olho um novo risco. Mais uma noite ao lado dele. Mais uma noite em que se sentia viva, como nunca.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Sentado na minha frente, sua respiração era inquieta. O diafragma que sobe, desce, torna a subir, move os tecidos da blusa. Estiquei os braços pela mesa, na tentativa de diminuir distâncias. Lembrei da cena de Je t'aime, Paris. Sempre achei que éramos como personagens de um desses romances franceses. Tinha a vontade de mover os dedos por sobre a distância, como que sentindo sua sombra, contornando no espaço seu corpo.
Ruínas de madeiras de móveis atacadas por cupins e outras pragas urbanas. A construção inteira parecia querer dizer algo sem encontrar boca. Falava em seu próprio modo: o piso que gemia a cada passo, mesmo que ele não fosse firme o bastante – a sua principal visitante não tinha esse tipo de andar. As janelas faziam grunhidos quando ela tentava fechá-las, talvez porque a casa não quisesse se fechar ainda mais. A porta jazia trancada com cadeados diversos mas a intrusa era ousada, encontrando buracos nas paredes que cavava com as unhas, ávida para entrar. Sabia que ali dentro se escondiam mundos, embora o exterior omitisse certas características. Gostava de passar a mão pelo corrimão da escada, fotografar com os olhos os descascados dos papéis de parede, retirar o pó sob os retratos. Se interessava por conhecer sua história. Sabia que nenhum livro ou opinião de vizinhos iria lhe dizer de modo certo. Só a casa poderia abrir espaço para ela, mandando de propósito um vento que murmuraria em seu ouvido as mais diversas palavras. (E se agora fecho os olhos, o vento da casa vem brincar com meus cabelos).

domingo, 17 de junho de 2012

É a insustentável leveza que se apresenta. Quantas vezes o beija-flor precisa bater as asas para que seu próprio peso seja comportado? O bater-asas constante, o épico esforço para se continuar a voar, para ter garantido o sentido da liberdade. Também batemos incessantemente as asas afim de tentar por segundos sustentar nosso próprio peso e nos mantermos no ar.
Capaz de arrancar todos os meus cílios e os teus
só pra criar desejos
que ficam maiores
assim que nossos dedos se encontram
e você fecha os olhos
pra desejar também.
Esse menino-homem sempre tem uma palavra pra mim
Um perfume forte que invade os sentidos
até quando não tenho mais sentido algum
de nada.
É hábil. Decidido, caminha pé ante pé em seu próprio ritmo
mas sei que nunca pensa em pausas.
São nossos os telhados das casas, os cigarros das calçadas, o embaçar das vidraças.
Memória olfativa não me trai mais. Isso tudo é impulso para a nossa queda livre. Especialistas diriam que cairemos a 200 km/h. Poetas, essa gente antropofágica, diriam que enfim seremos livres. A queda é o nosso império, nosso topo mais alto. O resto é ruína.
Encostado fumando
Ao teu lado
esmurrei paredes
esfolei os ossos da mão
finquei unhas no asfalto chuvoso.
É que eu só podia ter fumaça de cigarro
mas não quem a soltava pra mim.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Conteve-se por 17 anos no uso dos pronomes possessivos pra designar outra pessoa. Não podendo mais, explodiu-se em verborragias fágicas e encheu laudas e laudas de meu meu meu meu meu meu meu meu meu

domingo, 10 de junho de 2012

Se a casa está assombrada
não é por viagens passadas
nem por outros espectros
que não eu.
A pequena fantasma
que quase não sabe ser vulto
mas gosta de te encostar mansinho
enquanto adormece.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Essas ruas vazias da madrugada me dão a certeza de que poderíamos povoá-las feito dois vampiros doentios.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

A vontade de te encarar e dizer
como estava bonito hoje
Mas morrem nos meus lábios as palavras.
(Só não adormece o desejo)

terça-feira, 5 de junho de 2012

Acho que encontrei forma mais sábia de morrer. Tomada de remédios e álcool, só me sobrariam nos bolsos os papéis com teu cheiro, um cigarro molhado, uma chave, pedras de diversos tamanhos.