domingo, 2 de setembro de 2012

O eletrocardiograma imitou por pouco tempo a pulsação que Tábata trazia no pulso em tatuagem, pra lhe lembrar que ainda havia vida naquele corpo frágil. O branco, o branco que ela tanto temia vinha pra lhe queimar: lembra-te de que é mortal.

Memento mori.

Tentou perguntar o motivo, achou que a voz saira fina e fraca. Ele ouvira, no entanto.
A resposta foi faca no coração. Marco Antônio parecia quebradiço naquela cama de ferro. O rosto magro, o lençol manchado de sangue e suor, as queimaduras de cigarro datadas da noite anterior, marcas de agulha, hematomas. Na mesinha, colocadas com cuidado, estavam fitas pretas de cetim, um vidrinho de perfume, páginas soltas de seu bloco com gazelas e leões. A única coisa que Marco Antônio não permitiu que retirassem, usando de seu último ímpeto de força para apertar o braço do paramédico e lhe impedir, era seu colar. O cadeado e a navalha brilhavam na carne de seu pescoço, aquele ínfimo pedaço de carne descoberta entre as roupas de enfermo que lhe colocaram.

“Era pra ver se você vinha. Meu tempo acabou. Esse tempo...”

O cheiro que invadiu o ambiente, naquele instante, era o das orquídeas, o cheiro de canela, o perfume dele e o dela que se misturavam tão bem. O cheiro da morte anunciada. A trajetória do herói é em parábola. Ela sabia em que ponto Marco Antônio se encontrava.
Uma nota só. Uma linha reta – uma vida.
Só nessa hora a vida segue linha reta. A hora só se acerta quando morte e vida se cruzam. E aquele homem, o seu homem, estava morto.

Tábata não derramou uma lágrima. Pegou os pertences da mesa e os enfiou na jaqueta de couro. Deu um beijo nos lábios de Marco, marcando o batom vermelho e fechou as janelas, evitando a corrente de ar.

Era noite de quinta-feira, 30 de setembro de 2012.


Os jornais anunciavam, três dias depois, a morte de Tábata.
A pequena gazela e seu corpo boiando no lago do Ibirapuera. O porteiro a vira pela última vez às 19h. Transtornada, segundo ele, Tábata descera do terceiro andar do prédio onde morava vestindo sua jaqueta habitual. Os cabelos estavam soltos, sua boca bem pintada de vermelho. Sem bolsa. A perícia acredita que Arpe tenha se dirigido ao parque, burlado a segurança do local e, exatamente às 00:00 – de acordo com os investigadores um tipo de horário-ritual em sua relação com Marco Antônio Lionello – ela subira nas grades, descalça, e se jogara com pedras nos bolsos.
Em seu apartamento, encontraram sete bitucas de cigarro, uma seringa usada, sangue seco no carpete e uma caixa de madeira com uma cruz talhada. Ao lado, cadernos, livros marcados e folhas avulsas onde se lia:
Me enterrem de pé, como no livro, porque vivi ajoelhada a vida toda. Quero minha caixa ao lado da caixa de Marco e meu corpo ao lado do dele, como deve ser. De mãos dadas, incendiamos a vida. De mãos dadas, incendiaremos a morte. Tal qual aqueles dois, tínhamos um pacto de morte. Eu tenho que manter minha parte no trato. Está escrito.

Em outra, uma nota de suicídio dirigida a M.A.L:
O amor é peste. Estamos os dois condenados a ficar do lado de fora dos burgos. Nada importa. Seremos heróis por um dia. Sem glória alguma. Você lambeu minhas chagas, absorveu meu veneno, compartilhou minha loucura. Tudo o que me resta é pó. Jogo minha vida no sol das 17h, para ser consumida em altas labaredas. Só vejo branco, por todos os lados, branco é ausência de tudo. Não me deixe comigo mesma, Marco. Não suporto mais. Ninguém nunca será tão feliz como nós dois fomos. Você estava certo. Só é possível vencer o tempo se sairmos dele.
Da sua, da sempre sua, amante, mulher e presa,

T.

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Tábata Arpe, 20 anos, cometeu suicídio no dia 03 de outubro de 2012.

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