domingo, 2 de setembro de 2012

Quando morreu não deixou nada. Só a marca do seu sangue seco no asfalto e a estupidez que a marcou por toda a vida. Nem seu sangue tinha algum valor. Não valia a pena empenhar. Saiu de propósito sem agasalho pra tomar friagem. Saiu de propósito sem documento pra que ninguém soubesse quem era. Enterrada como indigente em vala comum. Não havia glória nenhuma. Saiu desviando dos olhos de quem passava. E não era capaz de ver seu reflexo nos vidros das vitrines. A moça de preto passava tão rápido que virava vulto. Não queria se ver. Nada de si parecia ser limpo. A sua parte mais bonita acabara perdida por um erro que cometera. A sua parte mais bonita, ele, não estava mais nela mas ainda a sentia viva e latejando como se estivesse. O membro amputado não para de existir na cabeça de quem o perdeu. O erro era dela. O erro era ela. O tempo eram os cartões que ele mandava. As notas de onde comiam, com o que gastavam, seus tíquetes de cinema e teatro, suas palavras. O tempo era aquilo que tinham quando estavam juntos, e só. Na distância, ela não existia. Estava perdida no branco. Era só quando ele a encostava, quando ela o puxava pelo casaco, quando reparava na sincronia dos passos pelas calçadas que ela se via alguém. No encontro com o outro, ela era. Não soube explicar. Faltou palavra. Não quis deixar a mão no instante. Pendeu. Flor que tomba do galho. Sobraram os registros no quarto de parede marrom, aquele que só ele tinha a chave.

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